"Se a realidade for demasiada, corta: mete um sonho"
Essa máxima talvez seja única na vida do cineasta espanhol que nunca se ateve a regras: Luis Buñuel
Uma imagem vale mais do que mil palavras até que a perda da memória revele o contrário. Então as palavras se tornam preciosas e vale a pena ir atrás de um milhar delas para narrar histórias. Foi o que o cineasta Luis Buñuel fez aos 82 anos quando decidiu escrever a autobiografia “Meu último suspiro”. O título acabou por se tornar profético já que o espanhol morreu pouco depois, aos 83.
Afiado na palavra “falada” (era um grande debatedor de ideias), Buñuel pediu ajuda a um amigo para conseguir escrever. “Não sou um homem da escrita. Após longas conversas, Jean-Claude Carrière, fiel a tudo o que lhe contei, me ajudou a escrever este livro”, diz no prefácio da obra.
Carrière aceitou a missão com vantagem, já que foi co-roteirista dos clássicos Bela da tarde (1967) e O discreto charme da burguesia (1972), além de assinar o filme com o qual Buñuel se despediu da carreira: Esse obscuro objeto do desejo (1977). Optou por uma narrativa simples, no entanto poética e discretamente bem-humorada, exatamente como o amigo de longa data.
“Se a realidade for demasiada, corta, mete um sonho”. Essa máxima talvez seja única na vida do mestre que nunca se ateve a regras. Temia o extremo oposto, o “fanatismo”, onde quer que se apresentasse. Por isso foi expulso do colégio de jesuítas quando menino, por isso deixou a militância no comunismo, por isso escreveu uma espécie de antibiografia, já que, contrariando paradigmas da modalidade, confessou fracassos e atacou amigos com a honestidade anárquica que levou para o túmulo.
Entre os momentos tocantes, na obra, está a explicação do que seja “uma vida”, concebida a partir da degeneração na velhice, com as crescentes perdas de audição e visão que levaram o cineasta à aposentadoria “precoce”:
“Você tem que começar a perder sua memória, em lapsos breves ou duradouros, para perceber o que ela significa em nossas vidas. Uma vida sem memória não é vida de modo
algum, assim como uma inteligência impossibilitada de expressão não é inteligência de fato. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento e pode ser até mesmo a nossa ação no mundo. Sem ela, somos nada.”*
O retiro voluntário que empreendeu do trabalho, mergulhou o cineasta não só nas lembranças da infância distante como na imaginação da morte. Rendeu-se à racionalidade, mas não se furtou a dirigir a cena, vício de ofício. Veja as duas versões:
A morte racionalizada
“há muito tempo que o pensamento da morte me é familiar (…), nunca quis ignorá-la, negá-la. Mas não há grande coisa a dizer da morte, quando se é ateu como eu. É preciso morrer com o mistério. Algumas vezes digo para mim próprio que gostaria de saber, mas saber o quê? Não se sabe nem durante, nem depois. Depois do Tudo, o Nada”.
A morte espetacularizada
“Imagino bastantes vezes uma última partida. Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu. Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos, confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro”.
Por fim, o aclamado cineasta formula um último desejo, representativo do seu interesse eterno pelos destinos do mundo:
“Uma coisa lamento: não saberei o que vai acontecer. Apesar do meu ódio à indústria da informação, gostaria de poder levantar-me entre os mortos a cada 10 anos, dirigir-me a uma banca e comprar vários jornais. Não pediria nada mais”.
*livres traduções a partir do inglês e do espanhol
Pesquisa e edição: Christiane Brito