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"Geraldo era muito bonito, parecia o ator James Stewart, tinha seus 48 anos, pianista clássico, muito requisitado, dava concertos no Theatro Municipal de São Paulo e também no do Rio. Era casado, tinha filhos, a mulher era mais velha que ele e estava doente, inválida, com um problema nos ossos. Mas ele era muito dedicado, nunca deixou faltar nada, até que se apaixonou pela Marlene, uma professora de 18 anos. Eu o conheci nessa fase, alucinado pela Marlene. Nós estávamos numa excursão, dividindo o mesmo quarto do hotel, e ele só falava na Marlene. Quando voltamos para o Rio, quis me apresentar a moça, mandou que ela botasse um tal vestido vermelho para me conhecer. A cara dele perto da Marlene... Era uma bajulação, ele ficava todo baboso. Quando estava longe dela, ligava quinhentas vezes. Se a gente estava almoçando junto, ele levantava várias vezes para ligar, saber se ela havia chegado. Quando ele começou a suspeitar que a Marlene tinha outro namorado, ficou louco. É que ela queria casar e o Geraldo não podia porque já  era casado, o jeito foi ela arrumar  outro. Um dia, o Geraldo montou guarda na frente da casa dela, no Méier: subiu numa árvore e ficou escondido, esperando a amada chegar, para ver quem era o sujeito que ela estava namorando. Uma humilhação danada. Perdeu toda a dignidade. Em outra ocasião, me pediu um dinheiro emprestado, que eu arrumei com o meu pai e fui levar a ele no camarim do Municipal, no Rio, na noite em que ele ia dar um concerto para o presidente da República, Juscelino Kubistcheck, entre outras autoridades do governo. Eu entrei no camarim, ele estava com um fraque, gravata branca, aquela roupa de concerto, as mãos mergulhadas numa vasilha com gelo para ativar a circulação e tocar melhor. Quando me viu, já  foi falando da Marlene, disse "você não imagina, aquela mulher, eu vou me matar, mas antes eu a mato, eu vou estrangulá-la com esses dedos". Eu pedi para ele ter calma, contei que a plateia estava lotada, todo mundo esperando para ouvi-lo. Ele só repetia "eu vou me matar". Aí saiu e foi tocar o piano. Ele era esse homem, desgovernado pela paixão. Passou um tempo, chegou o dia do casamento da Marlene. Eu fiquei ao lado dele, o Geraldo tomou um porre desgraçado, pediu para dormir na minha casa porque não podia encarar a mulher naquele estado. Concordei e passamos a madrugada acordados, ele fumando, lembrando tudo e se perguntando "o que é que eu faço, dou um tiro na cabeça?" Aí perdemos o contato, dois ou três anos depois, eu o reencontro. Vinha pela rua, falando sozinho, aflito. Cumprimentei-o e perguntei se estava bem. Ele disse "você não imagina, há três dias estou andando atrás de um bombeiro porque o ralo da minha pia entupiu, e o bombeiro já  foi lá , fez um buraco, não apareceu mais, eu não posso usar o banheiro porque ele tirou o piso todo, eu já  fui à polícia, vou dar queixa desse incompetente..." Eu fiquei olhando aquele homem irado, e lhe disse "Repara, Geraldo, durante cinco anos, tua casa não teve ralo, você não tinha goteira, você não tinha nada disso, não existiam esses problemas". Ele concordou, "é, não tinha". "Você não vai me dizer, eu continuei, que nesses cinco anos um ralo não entupiu, uma torneira não quebrou, é claro que alguma coisa assim aconteceu, mas você não deu a mínima importância ao fato porque estava apaixonado, agora você está de volta às banalidades da vida, ao sapato que aperta, às contas para pagar no fim do mês".

INÉDITO E EXCLUSIVO

Carlos Heitor Cony

 

Crônica da saudade irremediável

Moral da história: 

A paixão nos eleva acima da mediocridade cotidiana. Também dá para concluir que, afinal, tudo passa, principalmente a paixão. "Paixão que não acaba não é paixão", frisou o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, parafraseando o autor Nelson Rodrigues, que disse que amor que acaba não é amor. Encontrei Cony num hotel tradicional, no centro de São Paulo.

 

Num saguão com música ambiente, piano à vista, café frio na garrafa térmica, ele me contou a história, verdadeira, de seu amigo Geraldo, e a sua versão da "história do mundo", tudo isso tendo como ponto de partida o livro recém-lançado na época, "A Casa do Poeta Trágico"(1997). Cony tinha poucos minutos para mim, conforme explicou, porque logo mais embarcaria de volta ao Rio de Janeiro, onde mora. Mas nossos poucos minutos viraram uma hora e meia de conversa sem interrupção, que nos arrebatou do voo dele com hora marcada e do meu talão de zona azul vencido para algum plano mais nobre da existência. Terá  sido uma brevíssima paixão?

 

 O cronista político e literário me surpreendeu com suas interpretações do amor -- extraídas da prática -- e discretas confidências. Quando o tempo se tornou urgente, a despedida foi abrupta como o fim de uma paixão. Mas ele não se esqueceu de pedir, brincando: "Espero que você escreva um bom livro e que não acabe com a minha reputação."

 

Foi difícil, para mim, abrir mão de longos trechos de nossa conversa, não porque fossem censuráveis, como ele supôs, mas porque ultrapassaram em muito o objetivo desse livro, falar do amor e da separação. Para Cony, mesmo a paixão, com todo o espaço que ocupa, é menor que a vida e suas implicações. A paixão desfeita, no livro "A Casa do Poeta Trágico", é só um veículo para tratar da condição humana, tema que interessa muito mais ao escritor. Da mesma forma, a paixão em nossas vidas tem um propósito maior que justifica todo o sofrimento: abrir nossos olhos espirituais para o mistério do mundo. 

 

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