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A inutilidade das coisas que apaixonam

  • Foto do escritor: Biografia do Idoso
    Biografia do Idoso
  • 3 de ago. de 2015
  • 5 min de leitura

Oliver Sacks tem um câncer terminal e uma coluna de opinião no The New York Times. Hoje (24 de julho) publicou um texto sobre “tabela periódica”, ligeiramente feliz por ter chegado ao ano do chumbo – completou 82 agora em julho – e tecendo elogios a bismuto (83), idade que, acredita, não comemorará.

Quer ver lêmures na Carolina do Norte, assim que puder, e céu estrelado na hora da morte. A seleção de temas pode parecer complicada para leigos em ciência ou banal para amantes da literatura, no entanto exigiu minutos valiosos na vida de um homem que tem meses pela frente.

A preciosidade está nas entrelinhas, a preciosidade está no coração de quem lê, a preciosidade está na certeza de que o que nos realiza, de fato, não é a "utilidade" da tarefa, mas o enlevo que nos proporciona.

Pelo mesmo motivo que Sacks (prazer existencial, não sei como denominar), me dediquei à tradução a seguir, muito cheia de falhas -- porque sou praticamente nota zero em química e muito apressada no inglês. Que não domino.

MINHA TABELA PERIÓDICA

Por Oliver Sacks

Eu espero ansioso, quase ávido, por publicações semanais como Nature e Science, e então as folheio rapidamente em busca das matérias de física – não as de medicina ou biologia, como talvez devesse. Foram as ciências físicas que proporcionaram meu primeiro encantamento de menino.

Em uma edição recente da Nature, havia um artigo emocionante do Prêmio Nobel de Física, Frank Wilczek, mostrando novo modo de calcular a diferença de massa entre nêutrons e prótons. O novo cálculo confirma que os nêutrons são ligeiramente mais pesados que prótons — a relação entre suas massas é de 939.56563 para 938.27231 — uma diferença trivial, pode-se pensar, mas, não existisse, o universo como nós conhecemos não teria se desenvolvido. A capacidade de chegar a esse cálculo, escreveu Dr. Wilczek, "encoraja-nos a prever um futuro em que a física nuclear atinja o nível de precisão e versatilidade que a física atômica já alcançou" — uma revolução que, infelizmente, eu nunca verei.

Francis Crick estava convencido de que "o grande desafio humano" — compreender como o cérebro dá origem à consciência — estaria resolvido até 2030. Ele disse muitas vezes ao meu amigo neurocientista, Ralph, “você verá”, e, para mim, garantia: “você também, Oliver, se chegar à minha idade”. Crick viveu até o final dos anos 1980, trabalhando e pensando no despertar da consciência até o último segundo. Ralph morreu prematuramente, aos 52, e eu, aos 82 anos, sou um doente terminal. Preciso confessar que a resolução “do grande desafio” postulado por Crick não é o que me move, na verdade não considero esse um grande problema. Mas me entristece saber que não verei a nova física nuclear que o Dr. Wilczek prevê, nem mil outros avanços nas ciências físicas e biológicas.

Há poucas semanas em um passeio no campo, bem distante das luzes da cidade, eu vi o céu inteiro “pontilhado com estrelas” (nas palavras de Milton); tal céu, eu imaginava, poderia ser visto somente em planaltos elevados, secos, como o do Atacama, no Chile (onde estão alguns dos mais poderosos telescópios do mundo). Foi este esplendor celestial que de repente me fez perceber quão pouco tempo, quão pouca vida, ainda me resta. A percepção de tamanha beleza, que é a própria eternidade, misturou-se à percepção igualmente arrebatadora da transitoriedade – e da morte.

Disse aos meus amigos Kate e Allen, "Gostaria de ver um céu tão magnífico como esse quando estiver morrendo."

"Nós levamos você", disseram.

Eu tenho sido confortado, desde fevereiro quando revelei ter câncer metastático, pelas centenas de cartas que recebi, expressões de amor, de apreço e de que (apesar de tudo) posso ter levado uma vida boa e útil. Fico muito contente e grato por tudo isso — mas nada me tocou tão fortemente como aquele céu noturno cheio de estrelas.

Desde a infância criei uma estratégia para lidar com a morte — perdi pessoas queridas muito cedo — , voltando-me para o "não-humano". Quando fui enviado para um internato, aos 6 anos, no início da primeira guerra mundial, os números se tornaram meus amigos. Quando regressei a Londres, aos 10, elegi os elementos químicos e a tabela periódica como companheiros. Nos momentos de dor e tensão ao longo da vida sempre busquei, ou recuperei, o convívio estreito com as ciências físicas, um mundo onde não há vida, mas também não há morte.

E hoje, neste momento em que a morte não é mais um conceito abstrato, mas uma presença — tão próxima que não pode ser negada — eu estou novamente voltado aos metais e minerais, emblemas da eternidade. Em uma extremidade da minha escrivaninha, eu tenho o elemento 81, o tálio, em uma charmosa caixa enviada por amigos no ano passado, em julho, quando comemorei 81 anos. Também tenho o elemento 82, o chumbo, presente de aniversário pelos 82 anos completados agora em julho. Ao lado de ambas, está o tório, elemento 90, cristalino e lindo como o diamante, também radioativo.

Em fevereiro de 2015, poucas semanas após saber que eu tinha câncer, me senti muito bem, apesar da metástase no fígado. Fui submetido a uma “embolização”, processo terapêutico que extirpou as metástases. Não houve remissão, mas um “intervalo” na doença que me proporcionou energia extra mental e física para aprofundar laços de amizades, visitar pacientes, escrever e rever minha terra natal, a Inglaterra, em uma prazeirosa viagem. As pessoas que encontrei nesse período mal podiam acreditar que eu tinha um câncer terminal, eu mesmo quase me esqueci.

A sensação de saúde começou a declinar em maio, progressivamente, até meu aniversário em julho. Mesmo assim comemorei os 82 (Auden costumava dizer que todos deveriam comemorar o aniversário, não importava em que estado estivessem). Tenho náusea e perda de apetite, calafrios de dia e suores à noite, além de um cansaço generalizado que chega à exaustão. Continuo a nadar todo dia, porém mais lentamente à medida que perco o fôlego. Uma tomografia computadorizada, no dia 7 de julho, confirmou que a metástase não só agravou como se espalhou para além do fígado.

Comecei novo tipo de tratamento — imunoterapia — na semana passada. É arriscada, mas conto que possa acrescentar alguns meses, livres de sintomas mais graves, à minha vida. Mas antes de ir com tudo à nova terapia, queria ter um pouco de diversão na Carolina do Norte, visitando o maravilhoso centro de pesquisa de lêmures na Duke University. Os lêmures são a espécie mais próxima dos nossos ancestrais primatas. Fico feliz ao pensar que um dos meus antepassados, há 50 milhões de anos atrás, era uma pequena criatura que habitava árvores, parecida com um lêmur; amo sua vitalidade, pulando de galho em galho, sua natureza curiosa.

Ao lado do círculo de chumbo na minha mesa, está a “terra do bismuto”, com um bismuto natural da Austrália; lingotes de bismuto de uma mina na Bolívia; bismuto lentamente resfriado na forma de bonitos cristais iridescentes, que lembram construções Hopi; e, em homenagem a Euclides e à beleza da geometria, um cilindro e uma esfera feitos de bismuto.

Bismuto é o elemento 83 da tabela periódica. Eu não acho que verei meu 83º aniversário, mas sinto que há algo esperançoso, encorajador, no fato de ter bismuto ao redor. Além disso, eu tenho um fraco por esse metal cinzento, modesto, ignorado até mesmo pelos amantes dos metais. Minha solidariedade, como médico, pelos que são maltratados ou marginalizados nesta vida, estende-se para o mundo inorgânico e encontra um paralelo no meu sentimento pelo bismuto.

Quase certamente não verei o polônio (84) de aniversário, nem quero qualquer polônio, com sua radioatividade intensa, assassina. Penso nisso e logo avisto no outro extremo da minha mesa — minha tabela periódica —uma peça maravilhosamente feita em berílio (elemento 4), para lembrar a minha infância e o começo dessa existência que afinal se revela tão breve.

(Fonte: The New York Times, 24 de julho de 2015 - livre tradução)

 
 
 

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