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  • Christiane Brito*

A jovem amante de Edgar Alan Poe


Elena conviveu com a insônia desde menina. Adormecia com as outras crianças, na infância, mas despertava de madrugada e, pé ante pé, liberta das cobertas, deixava o quarto e entrava num mundo que a apaixonava, porque só havia silêncio e mistério. Andava pelos corredores no escuro iluminada pela imaginação moleca.

Um barulho poderia ser um fantasma e instigava o medo eletrizante que cedo a levou às páginas de Edgar Allan Poe ou a assistir, escondida, episódios de Além da imaginação, uma série de TV proibida para menores, com seres de outros planetas, de outros tempos, suspense que a fazia arregalar os olhos, também fechá-los em certas cenas, e que não a abandonava nem quando ela voltava para cama, silenciosa, protegendo-se com as cobertas de presenças que sentia na penumbra, à volta, saídas das páginas de Poe ou da televisão.

O medo valia a pena, por isso repetia o ritual, nunca lhe correu ficar na cama quando o sono desaparecia como num passe de mágica e todos ao seu redor roncavam, suspiravam, sonhavam, descansavam.

Não era uma rotina de toda noite, mas da maioria, e como criança que era, sem nenhum repertório de estudo comportamental, julgava que fosse comum, que era seu jeito, já que não se sentia incomodada, apenas desafiada.

Que imagens de outros mundos e vidas exploraria na TV com volume quase mudo ou na leitura dos contos de terror do mestre no gênero?

Jamais esqueceu certos personagens, maldições, infortúnios dessas histórias. Com eles alimentava a esfomeada imaginação e ambição de um dia escrever, nada que fosse sinistro. Desde menina pensava em decifrar enigmas românticos, dilemas familiares, sentimentos comuns a 99% da humanidade, exceto os psicóticos, dos quais ignorava a existência. Como ignorava um universo infinito de fatos; mitos, verdades ou meias-verdades; mentiras e decepções...o fracasso.

Tomava muita cortisona para combater a asma, um sufoco que o seu pai, paranoico com doença, lhe impingia. Quando piorava, aí sim as madrugadas tornavam-se puro terror, janela escancarada, fôlego trancado, um sofrimento solitário que não podia compartilhar com a família superprotetora. Poderia até apanhar, sim, cada um faz o que pode para ser o melhor na vida, seu pai extravasava o medo da doença com tapas, talvez pensasse que a asma era resultado de desobediência ao tratamento médico.

A experiência de apanhar na madrugada, para engolir comprimidos, ou de ir ao hospital fazer a inalação cercada de faces que de tão preocupadas pareciam acusadoras, era um pesadelo, muito diferente da saída furtiva da cama em dias de saudável falta de sono. Muitos e muitos anos depois, uma médica sugeriu terror noturno como causa da insônia crônica.

Seja como for, a menina, depois adolescente, conviveu com a asma até uns dez anos. Quando a doença sumiu, seguiu com a insônia como se fosse defeito de fabricação, assim como sua rinite alérgica.

O primeiro marido, aos 20, lhe apresentou um descongestionante nasal, que adotou para toda a vida. Já o casamento durou quatro anos e lhe deu uma filha, uma menina que nasceu com mochila de aprendiz às costas, sempre recheando-a com novas lições, até atingir uma maturidade comparada à da mãe. Tornou-se adolescente com perspicácia superior à média.

A insone admirava a pequena, acatava suas ideias, só não conseguiu, até aquele momento, organizar a vida como uma dona de casa faria. Preparava lanche, mingau de brigadeiro, se atrasava para levar a criança à escola, se perdia na rua quando dirigia o carro para locais desconhecidos em busca de entrevistados.

Elena posicionou-se bem no jornalismo, seu tônico da saúde e juventude eterna era a escrita. Deleitava-se assim, como em casa de bonecas, enquanto não descobria o sexo. Julgava que criar (escrever), amar sem censura na entrega de corpos e doar-se na maternidade eram farinha do mesmo saco. Bastava desvendar um e os outros dois viriam juntos.

Divorciada, empreendeu enfim a via crúcis do sexo. Era bom, descobria um tipo de beleza física que jamais encontrou no espelho. Estava no olhar do outro, por isso precisava sempre desse reflexo onde se descobrir pura e bela. Fora do olhar do amante, mergulhava em pensamento no olhar reprovador do pai, sempre presente na memória, na autopiedade em função de sentir-se mãe tão despreparada. E no medo. Não era o medo de fantasmas ou maldições, o medo, muito tempo depois soube ( talvez tarde ou em tempo, quem sabe qual a medida da vida) que era o medo de ser feliz.

Casou-se pela segunda vez, muito apaixonada e correspondida, brigou pela guarda da filha, brigou pela aceitação da filha, brigou para tornar mais seguro o caminho da filha na turbulência da adolescência. Novamente a insônia, desta vez pelo sumiço da garota, baladeira. Angustiava-se e sofria, mas, entre quatro paredes, sabia que preferia a menina na efervescência da noite do que na tristeza que às vezes a levava para o quarto. Ver a filha sob a coberta num dia de sol era quase tragédia.

O novo casamento chegou com herança nefasta: um aborto espontâneo e dolorido, a morte do cunhado por AIDS e o suicídio de uma prima do marido com um tiro de revólver num quarto de hotel. Tudo sobre as costas do marido, mas Elena sentia o baque nas suas e não sabia confortar-se nem a ele. A distância crescente entre os dois, natural, interpretou como desamor.

Morta de medo de estar sendo desamada, traiu e partiu, não sem antes deixar um lar de pernas para o ar para trás. Ela matou o afeto do marido, tipo haraquiri. Apesar de ter sido a autora do ato, não conseguiu igual resultado dentro de si mesma. Foi a primeira vez em que se trancou com a dor. Ninguém soube, nem a filha. Aos olhos do mundo talvez parecesse egoísmo, continuava bem, bonita, humor intato, projetos no teatro e com vídeo. Grande impostora.

A filha se apaixonou e se entregou pela primeira vez. A mãe concordou que dormisse em casa com o namorado, queria tê-los perto. Ah, como amava essa menina, quanto pensava nela, quanto desejava que trilhasse um caminho menos acidentado.

Desejava a maior felicidade do mundo para a garota, mas já consciente de que sonhos realizados são balelas hollywoodianas, melhor viver e construir para garantir o que se deseja. Sabia da fórmula, mas a imaginação tão destravada, tão exacerbada na infância, atrapalhava na hora de ser prática.

Conseguia dar conta da casa, das contas e só! Pagava a duras penas a faculdade da filha (nunca pediu pensão ao ex-marido), endividava-se por julgar que tudo teria solução, que dinheiro cairia do céu, e nem assim olhava para o chão, para o seu pé dentro de um laço que se apertava, a cada passo em falso.

Chegou o dia do encontro com novo tipo de amor, ele exercia uma dominação sexual. Curou-se de males físicos antigos, como alergias, descobriu a tal pequena morte dos franceses de um jeito para sempre inesquecível. Era ano novo na sua cabeça, fogos de artifício, derreteu-se como vela no final do pavio. Saiu da cama outra e ainda assim a mesma.

Mas o laço no pé não desatou, sinal de que a armadilha ainda a acossava. Teve outros parceiros para escolher, outros rumos, opção de enveredar pelo mundo prático talvez até um novo casamento. Mas ficou com o amante visual durante quatro anos, convicta de que era o melhor dos amantes, ainda que a escaldasse com baldes de água fria que afogavam sua autoestima.

Foi importante. E o que mais poderia ter sido? Ela não pagou para ver, não conseguia blefar nem bancar o azar. Um dia, na cama, pela primeira vez, ele broxou e ela supôs: tinha outra.

Quanta paranoia, refletiu consigo mesma, mas foi firme na decisão do fim que já havia anunciado muitas vezes, os temperamentos viviam em choque eterno, a possessividade

dele, metaforicamente, a estrangulava.

Sofreu como nunca, peitou a retirada de Laguna, saiu com outras pessoas e respirou aliviada. Tentou pensar que se enganara, ninguém adivinha uma traição em uma simples broxada na calada da noite, ninguém a não ser Elena, a que passeava com Edgar Alan Poe por noites tormentosas e inexplicáveis, a que assistia filmes proibidos para crianças influenciáveis, a que enfrentava noites de asma e de tapas, de olhares irados e assombrados, como se a morte rondasse.

Essa mulher desenvolveu a sensibilidade não só à flor da pele, mas de dentro para fora, fluindo pelos poros, todos os poros. Havia ainda a mente, sagaz, inimiga tantas vezes, inclemente e amável ao mesmo tempo, só para aumentar a confusão. Esta mulher tinha

muitos machucados que sequer conhecia, poucas cicatrizes. No saldo dos fatos, de bom, ficou a intuição que não se insinuava por sinais, vinha do fundo da alma.

Ah, a alma, sempre uma bússola...sentia como se um mestre a guiasse, um protetor a livrasse de danos maiores. Só por isso arriscava-se em tudo; se tudo perdesse, tudo recuperaria. Seus anjos da intimidade a faziam crer nisso, anjos que não nomeava e aos quais nem apelava. Bondade e paciência talvez fossem seus atributos, com eles se ungia nas situações de luto emocional.

Sempre foi devotada aos céus, sempre teve paixão pelos caminhos do espírito. Que trilhava, e trilhava, por vezes se refugiava em uma pedra de harmonia no caminho, consciente de que era uma trilha eterna e segura. Problema era quando se desviava...

A mente voraz e vivaz era a sua maior inimiga, pintava quadros e esculpia cenários de horror, autotortura e desespero tiravam a mulher do trilho. Mas logo voltava, num indo e vindo que foi se tornando cada vez mais constante quando chegou aos 50. E à segunda metade da vida.


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