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  • Christiane Brito

O poeta que nunca publicou e a cantora lírica que ganhou o mundo


Nos anos 1940, o amor chegou mais cedo às montanhas e os dois jovens não puderam embarcar. Despediram-se na estação sem perceber que haviam trocado as bagagens: cada um se tornou, então, guardião do coração do outro até que... Baseado em alguns fatos reais.

A eterna musa adolescente

Ele estava completando 20 anos, rapaz bonito, origem aristocrática, mas ainda perdido em relação ao destino profissional. Trocou estudos pelos bailes, gostava de sarau, poesia e de uma mulher em especial, embora não dispensasse nenhuma das que rodavam nos salões.

Encontrou Maria Helena um ano antes, na festa de Natal da família. Já a vira muitas vezes e nem reparara, uma menininha seis anos mais nova. Naquela noite, ela cantou – estudava canto lírico, já ganhara prêmio por sua interpretação na rádio Guarany – e pareceu muita mais velha dos que os seus 13 anos.

Foram conversar no jardim da casa, enluarado, a música seguiu noite adentro. Julgaram que eram almas gêmeas, compartilhavam façanhas comuns no passado -- fugir para a serra quando se sentiam injustiçados pelos pais --, paixões iguais no presente (música e literatura) planos futuros de casamento, filhos e fama.

Três filhos? Ela perguntou, ele acenou que sim com a cabeça. Olharam-se no fundo dos olhos e viram-se uma cantora de ópera e um escritor premiado. Muito felizes, com casas nas principais capitais do mundo a fim de cumprir a itinerância sociocultural sem descuidar da sensação de lar doce lar em cada pouso.

A manhã, onde fosse, era rotineira: despertar as crianças (função dele), dar os últimos toques na mesa do café (função dela) e reunirem-se na refeição que embasava o verdadeiro elo da família. Trivializavam o cotidiano como podiam, mas o lirismo sempre enquadrou as cenas, num arrebatamento com jeito de final feliz.

Quase podiam ver as cortinas se fecharem e ouvir os aplausos quando desenlaçaram olhares. Se existia perfeição nesse mundo só poderia ser aquele beijo trocado às pressas na hora da despedida. A partir daí, passaram a se encontrar por acaso, sorte ou busca deliberada um do outro. Eram encontros breves, menos palavras do que na primeira vez e cada vez mais beijos.

Um dia chegou a notícia, num envelope do correio: Maria Helena estrearia nos palcos da capital, em um sarau infantojuvenil, evento internacional no qual a menina seria a grande estrela. Ali estava a foto da jovem, cabelos ondulados, impecáveis, olhar fixo na câmera, não o vislumbrava mais.

Ele se sentou à mesa, retirou o bloco de cartas da escrivaninha e compôs um soneto, não era o primeiro, mas seguramente foi o mais desesperado, batizou-o de “retrato”:

I

Quando te fito amada criatura

Sinto a saudade de amor sonhado,

Como me custa suportar calado

A dor desta paixão que perdura.

II

Olha-me assim com toda essa ternura

E não posso sequer ver-te ao meu lado!

Pobre de mim, que vivo torturado

Com esse amor capaz de uma loucura.

III

Faz um milagre, Oh Deus onipotente,

Tu que também amaste ardentemente,

O coração da virgem casta e pura.

IV

Acalma o peito que esta dor estala,

Transforma este cartão triste e sem fala,

Naquele original que eu amo tanto!

A tristeza fez-se senhora porque dali para diante não se viram novamente. Ela ficou na capital, morando com uma tia e estudando com uma renomada soprano. Estava encaminhada, embora se sentisse tão desafortunada quanto o seu distante amado. Pois tinha a música na vida, mas deixara o coração na serra... como o resgatar?

Ele vagueava pelas montanhas, tudo se tornou sinistro, não conseguia escolher o que fazer do resto da vida. Voltar a estudar? Tentar carreira de escritor mesmo sem nenhum estímulo da família? Não poderia buscar sua Maria Helena sem ter o que lhe oferecer.

Pareceu-lhe que o futuro chegara cedo demais e cobrou além da conta. À volta só havia o “pessimismo”, que transformou em verso:

I

A frialdade das lágrimas que choro,

Desde o momento da separação,

Queima-me o peito cada vez que imploro

A luz bendita da consolação.

II

Não, alma, aquele amor que adoro,

Que canta e vive em meu coração,

Está distante do lugar que moro

E não tenho sequer resignação.

III

Ficam meus olhos marejados de água

Sempre que a tarde traz um novo sonho,

Sempre que a noite vem me encher de mágoa.

IV

Gemo exausto num silêncio mudo,

Sofrimento que me faz tristonho

A dor imensa que divulgo em tudo.

Algumas vezes, no tal lusco-fusco, nada mais que um espetáculo de cores que tinge o horizonte no entardecer e cria ilusões de ótica, julgou que a via, tinha certeza de que era ela. Desta vez, fez o soneto na cabeça e foi repetindo-o pelo caminho até chegar a casa:

I

Encerro os olhos para ver distante,

Na saudade sem par que me domina

A imagem singular da arte divina,

Que a lembrança me vem a cada instante.

II

E vejo, claramente, o seu semblante,

Seu porte divinal que me fascina,

Com graça de moça e de menina,

E sinto seu perfume penetrante...

III

E ouço a sua voz cantando aos meus ouvidos,

Num momento eu sinto a suavidade

Da luz de seus olhitos comovidos.

IV

Depois vejo à luz da realidade

Que era tudo mentira dos sentidos

Que era tudo um milagre da saudade.

Os anos passaram e a década virou: em 1950, soube que ela ia se casar. A essa altura, já tinha coleção de namoradas, já se estabilizara em um bom emprego, deixara os sonhos no papel. Os sonetos, todos, parafraseavam a mesma história de um coração roubado, tinha que haver alguma cura já que os fatos avançaram contra a vontade do rapaz em uma direção diferente e irreversível.

Fez um plano para reaver o que era seu e que julgava perdido, iria ao casamento, encararia o ritual com máxima frieza e, como um cirurgião da alma, iria resgatando a cada olhar pedaços seus perdidos em meio ao sorriso, à curva delicada dos quadris, ao contorno sem equívocos do nariz arrebitado... Logicamente nada deu certo.

Maria Helena, cantando nas próprias núpcias, pareceu a noiva mais linda que já vira, não o encarou nem uma vez, não fez qualquer tipo de troca com ele, nem cumprimento. Emudecida e tensa, não assumiu que roubara seus pertences, não devolveu nada. Ainda por cima, deixou-o louco de desejo, que ele exorcizou novamente no papel, na escrivaninha, na madrugada do novo dia: volúpia foi o que restou!

I

Há nesse olhar translúcido e magnético

A mágica atração de um precipício,

Bem como no teu rir, nervoso, cético,

As argentinas vibrações do vício.

II

No andar, no gesto mórbido,

Tens não sei que de nobre e de patrício

E um som de voz metálico, frenético,

Como o tinir dos ferros de um suplício.

III

És o arcanjo funesto do pecado

E de teu lábio morno, avermelhado,

Como um vampiro lúbrico, infernal,

IV

Sugaria o veneno amargo da ironia,

O satânico fel da hipocondria,

Numa volúpia estranha e sensual.

Ele completou um quarto de século pouco depois, bebeu três garrafões de vinho com os amigos, rolaram as ladeiras gargalhando por qualquer besteira; terminou adormecido ao relento. Até a dor de cabeça dar uma pontada capaz de despertar a mais teimosa das consciências: sabia que não poderia ser um bom escritor, bom marido ou bom pai se não tivesse o coração de volta.

O irmão mais velho, excêntrico para a época, amigo de extraterrestres, segundo dizia, levou-o a uma benzedeira. A reza foi brava, o jovem se sentiu diferente, saiu da casa de braço dado com a melhor das intenções. Raciocinou: ela é que é cantora de ópera, que vive dos dramas, eu estou com pés firmes no chão e eles podem seguir o meu comando, ainda que o comando, por ora, não venha do coração.

Fez as malas, mudou-se para uma cidadezinha no interior do estado, provisoriamente. Prestou concurso público para um cargo administrativo, passou em primeiro lugar. Com dinheiro no bolso, poderia pensar melhor, ver melhor... e foi assim que a viu, uma jovem distraída que quase o atropelou na mesinha da calçada.

O café respingou na imaculada camisa branca e maculou também o pensamento do rapaz. As ideias chegavam borradas, muitas, na contramão, do avesso, de ponta-cabeça. Estendeu a mão para que ela se juntasse a ele à mesa. À falta de palavras chamou o garçom e pediu mais dois cafés, como se soubesse exatamente do que a desconhecida gostava.

Se a Maria Helena o conquistara com o sonho, esta o conquistou com o feijão. Não cantava, mas tinha uma conversa que nunca acabaria e jamais calou até a morte dele, 60 anos depois.

Nesse ínterim, Maria Helena cantava, sem saber, os mesmos temas dos sonetos do amado. Um e outro descobriram que a dor é que fazia a vida mais bela. A voz de soprano expressava a dor da perda e conquistava o público. Tivessem sido os dois felizes à primeira vista não conseguiriam garimpar tanta riqueza interior.

Ele teve quatro filhos, ela, a fama. E ambos viveram o sonhado casamento, que planejaram juntos, em detalhes, no primeiro encontro. Do café da manhã até o anoitecer, lado a lado, na cama, tiveram casamentos realizados, apesar dos corações trocados, conforme julgavam.

Um dia, ele encontrou os sonetos amarelados em uma gaveta, releu, nenhum valor afetivo ou literário se desprendeu das palavras. Mas havia um soneto, apenas um, que retratava o seu sentimento atual. Leu-o e pensou que parecia profético, porque descrevia exatamente o seu amor de agora, o seu amor de sempre, a mãe dos seus filhos. Já eram, a essa altura, avós, comemorariam na semana seguinte as bodas dos 50.

Na noite da festa, ele pediu silêncio para ler um soneto que queria dedicar à esposa. Foi uma surpresa, uma choradeira só. Serviu para ele finalmente concluir que amor não faz morada exclusiva em um coração, isso é licença poética. Amor é um rio que passa em nossas vidas ungindo as pessoas de modo diferente; nunca nos deixa na seca, segue sempre até desaguar no mar da eternidade, que é amor de montão, infinito. O soneto dos 50 anos chamava-se justamente “amor imortal”.

I

Sempre teu, sempre minha, sempre unidos,

Sempre de braços dados, como agora,

Nós dois iremos, pelo amor, reunidos,

Rindo e cantando pela vida afora.

II

Seremos sempre assim, ambos queridos,

Eu por ti, tu por mim, e de hora em hora

Hei de querer-te mais que em dias idos

E hás de querer-me muito mais que outrora.

III

Quando a alvura das neves dos caminhos

Cobrir nossas cabeças, bem velhinhos,

Recordaremos os bons tempos já vividos,

IV

Havemos de ainda ser os mesmos de antes,

Ambos apaixonados e constantes,

Sempre teu, sempre minha, sempre unidos.”

P.S. Os personagens existiram, conheci o autor dos sonetos (publicados nos anos 1950) e também a cantora de ópera.


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