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  • Oliver Sacks (1933 - 2015)

A alegria dos 80 (com licença poética do autor)


Recuperei no acervo do The New York Times um artigo que Oliver Sacks publicou no dia 6 de julho de 2013 – às vésperas dos 80 anos, no dia 9. Inspirada por sua vida (que tanta poesia levou à ciência), fiz uma versão livre das suas palavras. Julgo que ele mesmo me soprou os parágrafos finais ao ouvido já que, conforme revelou neste artigo, descrê de vida após a morte a não ser no coração dos amigos ou na eterna confabulação dos seus textos com os velhos e novos leitores:

"Noite passada eu sonhei com mercúrio — enorme, glóbulos brilhantes sempre em movimento, subindo e descendo. Mercúrio é o elemento número 80, e meu sonho é um lembrete de que, na terça-feira, vou fazer 80 anos.

Elementos e aniversários se entrelaçaram cedo na minha vida, desde a infância, quando aprendi sobre números atômicos. Aos 11 anos, eu poderia dizer "sou o sódio" (elemento 11), e, agora, aos 79, eu sou o ouro. Há alguns anos, quando dei a um amigo uma garrafa de mercúrio em comemoração ao seu 80º aniversário — uma garrafa especial que não poderia vazar — ele me olhou de um jeito esquisito. Mais tarde me enviou uma carta encantadora em que brincou: "Eu tomo um pouco de mercúrio todas as manhãs para manter a saúde."

Oitenta! Eu mal posso acreditar. Muitas vezes eu sinto que a vida está prestes a começar, apenas para perceber, logo depois, que está quase acabando. Minha mãe foi a décima sexta de 18 crianças; eu era o caçula de quatro filhos e quase o caçula entre os muitos primos, além ser o mais novo da classe na escola secundária. Mantive essa sensação de ser o mais novo, mesmo agora, quando sou praticamente a pessoa mais velha que conheço.

Pensei que morreria com 41, quando eu sofri um tombo e quebrei uma perna escalando sozinho uma montanha. Fiz uma tala na perna, o melhor que pude, e comecei a descer desajeitadamente, usando os braços como apoio. Nas longas horas que se seguiram, eu era assaltado por lembranças, boas e más. A maioria expressava gratidão — gratidão pelo que eu tinha recebido da vida e gratidão também por ter sido capaz de dar algo em troca ao mundo. "Awakenings", meu livro, havia sido publicado no ano anterior.

Com quase 80, muitos problemas médicos e cirurgias, nenhuma sequela, sinto-me feliz por estar vivo — "Estou feliz porque não estou morto!" às vezes essa frase explode fora de mim quando o tempo está perfeito. (Acho que em contraste com uma história que ouvi de um amigo: caminhando com Samuel Beckett em Paris, em uma manhã de primavera linda, disse-lhe, "um dia como este não faz você feliz por estar vivo?" ao que Beckett respondeu, "Eu não iria tão longe.")

Eu sou grato por ter experimentado muitas coisas — algumas maravilhosas, outras, horríveis — e por ter sido capaz de escrever uma dúzia de livros que me permitiram receber, em troca, inúmeras cartas de amigos, colegas e leitores, desfrutando, assim, o que Nathaniel Hawthorne chamou de "um intercurso com o mundo."

Lamento ter desperdiçado (e continuar desperdiçando) tanto tempo com coisa à toa. Lamento ser tão tímido aos 80 como era aos 20. Lamento não falar outras línguas além da materna e não ter viajado tanto, não ter mergulhado tão intensamente quanto gostaria em outras culturas.

Eu sinto que deveria estar tentando “completar” a minha vida, seja lá o que isso signifique. Alguns de meus pacientes, com 90 ou 100 anos, até mais, me dizem — "Eu tive uma vida completa, estou pronto para ir." Para alguns deles, “ir” (morrer) significa chegar ao céu — é sempre céu em vez de inferno, apesar de Samuel Johnson e James Boswell terem dito maravilhas sobre o inferno e terem se horrorizado com David Hume, por desacreditar de tudo. Não tenho crença ou desejo de qualquer existência post-mortem, excepto nas memórias de amigos e na esperança de que alguns dos meus livros ainda possam "falar" com as pessoas depois da minha morte.

O escritor W. H. Auden muitas vezes me disse que viveria até os 80 e depois "cairia fora do planeta" (viveu somente até os 67). Apesar de já fazer 40 anos que ele se foi, sempre sonho com Auden, com meus pais e alguns antigos pacientes — eles se foram, mas continuam a fazer parte da minha vida.

Aos 80 anos, o risco de demência ou acidente vascular cerebral aumenta rapidamente. Um terço dos meus contemporâneos morreu; outros, muitos, convivem com dano físico ou mental profundo, estão presos a uma existência trágica e limitada.

Aos 80 anos, as marcas da decadência ficam mais evidentes. As reações tornam-se mais lentas, os nomes freqüentemente escapam da nossa memória e a energia esvai, mesmo assim algumas pessoas desta idade afirmam que se sentem revigoradas e de modo algum “velhas”. Talvez, com sorte, eu seja uma dessas pessoas, e consiga viver mais alguns anos com liberdade para continuar a amar e trabalhar, as duas coisas mais importantes da vida, segundo Freud.

Quando minha hora chegar, espero poder morrer em ação, como Francis Crick. Quando lhe disseram que seu câncer de cólon tinha retornado, num primeiro instante, ele não disse nada; simplesmente olhou para longe por um minuto e então retomou o seu raciocínio anterior. Quando pressionado sobre o que faria a respeito do diagnóstico, algumas semanas mais tarde, disse, "tudo o que tem um começo deve ter um final". Quando morreu, aos 88, ainda estava totalmente envolvido em seu trabalho mais criativo.

Meu pai, que viveu 94 anos, costumava dizer que os 80 tinham sido uma das décadas mais agradáveis que viveu. Ele sentiu, como começo a sentir, não uma redução, mas uma ampliação da visão e perspectiva de mundo. Mais velhos, nós nos apropriamos não só da própria experiência como da experiência de outros. Já teremos vivido e testemunhado a tragédia e o triunfo, a evolução e o retrocesso, a grandeza e a mediocridade da natureza humana. Passamos a ter maior consciência da transitoriedade e, talvez, da beleza da vida.

Eu posso imaginar, sentir em meus ossos, o que é um século de história, percepção impossível aos 40 ou mesmo 60 anos de idade. Não penso que eu deva resistir ao envelhecimento ou fazer o melhor para torná-lo suportável, ao contrário, quero viver essa etapa como um momento de lazer e liberdade; aos 80, eu me liberto do sentimento de urgência da juventude e me permito explorar longamente os pensamentos e sentimentos de uma vida."

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