Não trairás a mulher amada
- Christiane Brito
- 3 de dez. de 2015
- 3 min de leitura

O século 20 chegou com mau agouro. Era o que dizia a minha avó, uma jovem romântica na virada do tempo, mas logo com o coração combalido como soldado que volta da guerra. Ainda não depusera armas, mas tinha inteligência para reconhecer que precisa mais do que artilharia pesada para derrotar um inimigo. E se estratégia é o que conta, estava perdida, mergulhava e debatia-se na mente vazia de ideias, pensara com o coração desde sempre.
O lado cigano, talvez de povos bárbaros que invadiram sua Hungria, a fazia quebrar xícaras e pratos na pia enquanto lavava louça, derrubar sopeiras fumegantes quando servia a mesa, cercar-se de cacos e barulhos assustadores quando caminhava pela vida. Ninguém a ouvia porque sua dor era muda. Julgavam-na uma estabanada, precocemente cansada ou doente, porque já passara dos 30 com quatro filhos para cuidar, além dos que perdera.
Sua cintura fina que o marido agarrou no ar enquanto a puxava para si e a levantava do chão, carregando-a com toda paixão do mundo para longe da casa dos pais, em uma noite sinistra, de vento que assobia, alargara-se nutrida de melancolia. Os olhos que eram grandes cresceram para se tornarem espantados. Antes, se estreitavam e quase fechavam, movidos pelo gosto do desejo. O marido era um deus, incomparável a qualquer ser humano, uma enormidade que desafia toda a lógica do seu raciocínio. Contra ele, tinha mãos atadas. Ou alongadas apenas para carícias, todas as vezes em que ele se acercava e seu encantamento a cegava para as suspeitas ou certezas que estilhaçavam as louças da casa.
Impossível acreditar que amor acabe.
Releu as palavras que já sabia de cor. Elas ecoavam no silêncio dos cômodos e na balbúrdia das crianças. Chamou o filho preferido, 10 anos, olhos exatamente como os seus. Com meias e botas, casacas e calças, tinha o corpo esguio protegido para que dele não se evadisse a vida. Tinha asma, como o bebê que morrera antes de ele chegar.
O preferido entrou sério, como sempre, desta vez com medo. Geralmente compassava o coração quando sua mãe estava perto, agora não. Supôs que sufocaria, nenhuma surpresa, tornara-se hipocondríaco. A carta foi colocada em suas mãos miúdas, de dedos curtos e gordos. Leu, entendeu, na verdade, já sabia de tudo, mas se horrorizou ao descobrir que a mãe também sabia.
Meu filho, pediu a mulher claramente desesperada, prometa que você nunca irá trair a mulher que amar. Prometo que nunca irei trair a mulher que eu amar.
Quando me contou essa história, já aos 90 anos em um leito de inválido, mas não de morte, enfatizou muito as últimas palavras. Compreendi, compreendi bem. Se a mulher não fosse a amada, poderia ser traída. E quem esse homem viúvo de duas amara? O jogo de palavras o salvara do destino de ir contra a própria natureza. Nunca fora homem de se devotar a uma única mulher. E ninguém poderia dizer que traíra a mãe por ter sido infiel nos casamentos.
Freud aparece naquele quarto, com uma montanha de livros nas mãos, Édipo o seguia calado. Eu o dispensei embora entontecido com a trama edipiana. Trair a esposa é trair a mãe? Amar a esposa é amar a mãe?
A mãe cigana do ancião à minha frente conheceu o amor e depois morreu de sofrimento ao descobrir que o sentimento acabara no coração do amado. Já o ancião não conheceu o amor porque amar lhe pareceu sinônimo do sofrer demais.
A mulher morreu do coração nem dois anos depois de descobrir a traição. O viúvo jamais se casou. Dizem que também morreu de amor três anos depois porque a culpa foi maior do que a coragem de se unir à amante. Dessa última, ninguém sabe, apenas que existiu.
Os amores infelizes se perpetuaram nos laços da família. Mas consegui quebrar a maldição porque saí de casa com bagagem leve, deixei para trás o medo de amar e de sofrer. Amei, amei, amei.
Meu pai, o ancião, ainda tem alguns anos de vida pela frente. Foi o que disse o médico esta tarde. Foi o que contei à mulher que eu amo esta noite, no jantar. Amor não acaba, é o que gostaria de dizer à minha avó. Por isso ela e o meu avô morreram cedo, na fogueira dos amores interrompidos. Seguissem na chama, ardessem na vida infinda desse sentimento...
Tenho netos e não tenho certeza do que direi a eles quando estiverem se debatendo nessas questões. Não quero que sofram, mas o sofrimento lhes dá a única chance de serem felizes. Amem e sofram, direi. Ou não. Talvez vivam sem medo seja a resposta mais apropriada.
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