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  • Foto do escritorBiografia do Idoso

Na cama com amor aos 60


Paul Auster devassa, no texto abaixo, a intimidade de um casal improvável. Que, “no entanto” -- e esse é o grande mistério de todo relacionamento que dá certo -- gostava de estar junto, de se abraçar, beijar, se amar na cama e rir de tudo enquanto conversava trivialidades ou compartilhava o companheirismo das manhãs e finais de noite.

DESVARIOS NO BROOKLYN (Paul Auster)

“Nós estávamos de caso havia mais de seis meses, e mesmo morando em casas diferentes, era muito rara a semana em que não passávamos ao menos duas ou três noites na mesma cama – a dela ou a minha, dependendo do que o humor ou as circunstâncias ditassem. Joyce era uns dois anos mais nova do que eu, ou seja, uma coroa, já, mas aos cinquenta e oito, cinquenta e nove anos ainda tinha cartas suficientes na manga para tornar as coisas interessantes.

Sexo entre pessoas de idade pode ter seus constrangimentos e suas cômicas longuers, mas tem também uma ternura que muitas vezes escapa aos jovens. Os seis podem estar caídos, o pinto pode amolecer, mas a pele continua sendo a sua pele e quando de quem você gosta estende a mão para tocá-lo, ou o segura nos braços, ou lhe dá um beijo na boca, Você ainda derrete inteiro do mesmo jeito como derretia quando achava que iria viver para sempre.

Joyce e eu não havíamos chegado ao dezembro da vida, mas não restava a menor dúvida de que maio já se fora havia muito tempo. O que tínhamos era uma tarde em meados ou fins de outubro, um daqueles dias claros de outono, com um céu muito azul lá no alto, um ventinho cortante soprando meio gelado e um milhão de folhas ainda coladas aos galhos – quase todas secas, mas com dourados, vermelhos e amarelos suficientes para deixar você com vontade de continuar ao ar livre por mais um tempinho.

Não, ela não era uma beldade como a filha e, com base em fotografias antigas que me mostrou, nunca tinha sido. Joyce atribuía a beleza física da filha ao falecido marido, Tony, um empreiteiro da construção civil que morrera de ataque cardíaco em 1993. “Ele era o homem mais bonito que eu já vi em toda minha vida”, ela me disse uma vez. “Cópia escarrada do Victor Mature.” Com seu forte sotaque do Brooklyn, o nome do ator saía da boca de Joyce soando mais ou menos como Victa Matchuá, como se o “r” tivesse se atrofiado até ser eliminado do alfabeto inglês. Eu adorava aquela voz vulgar, proletária, que me transmitia a sensação de estar pisando em terreno seguro e, assim como outras qualidades suas, me dizia que ali estava uma mulher sem pretensões, uma mulher que acreditava em quem era.

À primeira vista, não tínhamos quase nada em comum. Havíamos sido criados de maneiras totalmente diferentes (ela católica, morando na zona urbana, eu judeu morando nos arredores da cidade) e nossos interesses divergiam a respeito de quase tudo. Joyce não tinha a menor paciência com livros, não lia nada, ao passo que eu evitava todo e qualquer exercício físico, almejando a imobilidade como o supra-sumo da boa vida. Para Joyce, o exercício significava prazer e sua atividade preferida de fim de semana era levantar às seis da matina no domingo e ir passear de bicicleta no parque. Ela continuava trabalhando e eu me aposentara. Ela era otimista, eu, um cínico. Ela tinha tido um bom casamento e o meu – mas chega desse assunto. Ela prestava pouca ou nenhuma atenção ao noticiário e eu lia os jornais com o maior cuidado todos os dias. Na época em que fomos crianças, ela torcia pelo Dodgers e eu era fã do Giants. Ela gostava de massa e peixe, eu, de carne e batata. E no entanto – o que pode ser mais misterioso a respeito da vida humana do que esse no entanto? – nos dávamos a mil por hora. Eu me senti uma atração imediata na manhã em que fomos apresentados, mas só depois que tivemos nossa primeira longa conversa (...) foi que compreendi que talvez houvesse uma faísca entre nós. Num acesso de timidez, adiei ligar para ela, mas na semana seguinte ela me convidou para jantar em sua casa e nosso flerte começou.

E por acaso eu a amava? Sim, muito provavelmente sim. Na medida em que tinha capacidade de amar alguém, Joyce era a mulher certa para mim, a única candidata da minha lista. E, mesmo que não fosse aquela paixão gloriosa que supostamente define a palavra amor, era algo que ficava um tantinho só aquém – mas tão perto da marca que tornava a distinção sem sentido. Ela me fazia rir um bocado, algo que os médicos dizem ser ótimo para a saúde tanto mental como física das pessoas. Ela tolerava minhas fraquezas e incoerências, aguentava meus ataques de rabugice, permanecia calma (...). Sim, eu a amava na medida em que me permitiam as leis da natureza (as leis da minha natureza), mas estaria preparado para passar o resto da vida a seu lado? Será que eu queria vê-la todos os dias da semana? Estaria apaixonado o bastante para dar o grande passo?

(continua na página 296 do livro Desvarios do Brooklyn, Paul Auster, Companhia das Letras)

(na foto, Spencer Tracy e Katherine Hepburn em cena de filme; na vida real, se amavam de modo nada convencional)

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