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  • Christiane Brito

Encontro com Alzheimer


Dez anos depois da viuvez, começou a fazer censo dos talheres, rodízio de copos (tinha dois conjuntos) e maratona de novelas na tevê. Ninguém diria, exibia-se bem tratada, toda sorriso, pensamentos inteligentes. Quem dava conta do olhar esquivo avaliando o nada, a fala avulsa, desconectada do entendimento? Sutil até para ela mesma que não vislumbrava demência à vista.

Agasalhava-se cada vez mais com a manta das lembranças quando se acomodava no mesmo canto afundado do sofá envelhecido. Cortinas decadentes faziam sombra para a madeira imponente do mobiliário herdado, esse lhe sobreviveria. Dedicava-se a palavras cruzadas e livros amarelados, sempre relidos porquanto esquecidos.

Naquela tarde longa como todas, quando o olhar baixou para perscrutar uma dor que julgava alojada no estômago mas que de fato emergia desde o umbigo da existência, o semblante entristeceu-se. Levou o olhar para o passado, não mudou o corpo do lugar e ainda assim se transportou para o escritório, onde o filho fazia infinitas contas que jamais fechavam.

Fisionomia raivosa, o homem estava adoecendo o fígado. Só podia deitar números nas páginas do caderno de contabilidade: que fazer com as palavras dançando na mente? Não entendia, não sabia ser pai da mãe, só sabia que ela estava indo embora e havia um pacto de silêncio entre os dois. Desde a infância. Não brigavam e não se amavam.

O telefone tocou cortou o fio da memória da mulher. Uma voz do outro lado falou, mas o que ouviu foi o pensamento nas alturas: se tudo em mim agora se esvai por que não o caderno e o desencontro com o filho? Deu fim no caderno no dia seguinte, deixou a conversa com o filho para o outro mês e acabou se esquecendo.

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