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  • Christiane Brito

Amigos enquanto havia café


A namorada disse que o ex-namorado era poeta e se parecia com ator de cinema italiano.

Ele ficou interessado, afinal, também se julgava poeta já que tinha vencido um concurso de poesia na escola.

Marcaram um encontro a quatro.

Nessa época, o ex-namorado vivia o ápice da juventude, nem 30 anos ainda, poesia na ponta da língua e meninas deslumbradas ao alcance de um psiu. Sussurrado.

O namorado atual gostou do ex, duplamente atraído pela aparência de bonitão do cinema e pela opção de vida, alternativa.

Vendia um livro para tomar café com leite na padaria. O trunfo era se abrigar na casa das amadas. Levava apenas a escova de dentes e logo era puxado pelas pernas até a cama. Huumm. Que fácil.

O namorado atual trabalhava enfadonhamente, a bem da verdade estava enfadado com tudo. Não abandonava no entanto a disciplina. O tempo estava a seu lado.

O ex-namorado mudou de namorada, traiu ao sol do meio-dia.

O namorado atual também traía, mas nunca às claras. Como de resto não se confrontava às claras com nada a não ser no discurso político. A militância ficou no passado.

O namorado atual perdeu o posto porque a namorada era indomável, leviana e violenta. Ele resolveu consolar a ex do ex, mas não assumiu. Transou na calada da noite.

O ex voltou para a ex-namorada, depois montou um triângulo das bermudas com outra ex e duas casas. Levava todo o suspense e aventura para o hai-cai. Deu certo. Vendia mais livros.

O namorado atual que deixou de ser namorado cercou a ex, tentou voltar até ter certeza de que o relacionamento poderia destruir o que conquistara com muito suor à custa da disciplina.

O ex e ele tornaram-se amigos mas nunca partilharam a mesma opinião a não ser a respeito de literatura. Riam juntos, tomavam café, falavam mal das mulheres.

Um dia os ventos mudaram, derrubaram a estrutura do poeta, frágil desde sempre aos olhos do mundo.

Outros ventos abateram o enfadado, mas não abalaram a estrutura material, seu compromisso maior.

Qual destruição causa danos irrecuperáveis?

Possivelmente ambas, mas o mundo trata melhor quem cuida do bolso.

O bom vivant seguiu, trocando namorada enquanto os dentes não caíram.

Então esses se foram, a gengiva inflamou, as mulheres não queriam papo.

O trabalhador partiu para novo casamento, que terminou como o anterior. Ficou sozinho na vã tentativa de entender quem estava errando.

Eis que os dois se cruzaram novamente só que no pior momento para um e outro.

O destino não foi bondoso porque o destino não se pauta por intenções nem por dogmas sociais ou loucura romântica. É porque é. Segundo ensinaram os gregos.

O poeta se confrontou com a volta para a casa da família, no interiorzão, era migrante em cidade grande.

O trabalhador se aposentou solitário, incerto, na cidade em que nasceu. Nasceu com melhor sorte?

A vida continuou, como suposto.

O poeta se casou mais uma vez e, desta feita, não deu as cartas, teve que amargar a traição. Pôs-se a sonhar com a cidade grande. Desesperado.

O trabalhador se refugiou no que já conhecia até que centrou atenção em uma nova mulher. Desesperado, só que ninguém diria.

Moral da história: quem tem casa tem casamento e um tipo de futuro. De que servem os versos na vida de um homem? Essa é uma segunda moral, que só poderá ser evidenciada na posteridade, afinal, o talento do poeta se perdeu na poeira das ruas, mas pode ser recuperado se for mesmo genial como um Van Gogh. Poucos são.

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